As ruínas de Joan Didion*
“O ano do pensamento mágico” passou mais de um ano na prateleira do escritório. Ainda no plástico, o livro aguardou pelo momento da minha coragem e, quando a leitura se concretizou, eu entendi por que fugi tanto dela.
O livro de Joan Didion é sobre luto, dor, perda. É sobre uma mulher (a própria autora) e sua experiência de tentar seguir a vida após a morte do marido, John, com quem conviveu por mais de 40 anos.
No dia 30 de dezembro de 2003, Joan e John visitaram a filha na UTI do hospital em que ela estava internada, em Nova York (EUA), e voltaram para casa. Durante o jantar, ele desmaiou sobre a mesa, Joan chamou o socorro médico e viu o marido ser levado pela ambulância, chegando sem vida à unidade de saúde.
A vida muda rapidamente.
A vida muda em um instante.
Você se senta para jantar, e a vida que você conhecia termina.
A incredulidade, as burocracias, os cuidados desejados e indesejados, o déficit cognitivo, a dificuldade de encontrar sentido e a insistência da memória em se apegar a qualquer coisa que remeta a quem partiu. Esses são alguns dos assuntos que a obra discute e compartilho aqui um dos pontos que mais chamou minha atenção.
Num determinado trecho, Joan cita o livro “Funerals”, de Emily Post, publicado em 1922, uma espécie de guia de etiqueta para lidar com situações de luto. Quando pensa sobre essa obra, Joan conclui que ela foi escrita num mundo no qual o luto ainda era reconhecido, permitido e não ocultado.
Na tentativa de lidar melhor com o que estava vivendo, Didion passou a ler sobre a morte e chegou até livros de sociólogos e antropólogos. Um deles, Geoffrey Gorer, no livro “Death, Grief and Mourning”, explica que, especialmente a partir da década de 1930, o sofrimento diante da morte passou a ser visto mais fortemente como algo vergonhoso, proibido.
“Gorer descreveu essa rejeição do sofrimento público como resultado da pressão crescente imposta por um novo dever ético de se divertir, um novo imperativo de não fazer nada que possa diminuir o contentamento alheio”. (pág. 62)
Estamos tão impregnados por esses imperativos que fugimos insistentemente da dor e nos incomodamos diante do sofrimento alheio (ou da aparente falta dele) quando a questão é a perda de um ente querido. Mas “o sofrimento pela perda acaba por se revelar um lugar que nenhum de nós conhece até chegar lá”, escreve a autora.
“O ano do pensamento mágico” reconstitui o ano de Joan Didion após a perda do marido, período em que, entre outras coisas, ela teve dificuldade de se desfazer de roupas e sapatos dele porque, no fundo, acreditava em seu retorno. Nesse período, ela também apresentou crises de pânico, dificuldade de concentração, teve sonhos elucidativos e conseguiu compartilhar parte disso num livro tão emblemático, que recebeu o prêmio de melhor obra de não-ficção no National Book Award de 2005, ano em que a autora perdeu a filha, Quintana.
Joan expõe as experiências vividas diante da morte e os fragmentos que usou para escorar suas ruínas, mesmo que fosse através dos rituais repetidos da vida doméstica: pôr a mesa, acender as velas, limpar a lareira, cozinhar, arrumar os lençóis, as toalhas, enfim, aproveitar as oportunidades de fazer pequenas afirmações de fé no futuro, como regar uma planta, trocar lâmpadas queimadas. Essas pequenas afirmações diárias mantinham as ruínas erguidas, mesmo nos momentos em que Joan não tinha tanta fé.
*Joan Didion faleceu no dia 23 de dezembro de 2021, aos 87 anos, na cidade que tanto amava, Nova York. Quem quiser conhecer mais sobre a autora, pode assistir o documentário “Joan Didion: The center will not hold”, disponível na Netflix.
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