Crônica para um abraço impróprio
- Pensei em ligar pra Lúcia e me desculpar.
- O que aconteceu?
- Foi semana passada. O calor me deixou de saco cheio. Coloquei a máscara e caminhei até a sorveteria. Ainda bem que não tinha fila. Eu peguei o sorvete e sentei num dos banquinhos que eles colocaram do lado de fora, ao ar livre. Enquanto me refrescava, ela apareceu. Fazia uns cinco anos que não nos encontrávamos.
- Mesmo morando numa cidade pequena como a nossa?
- Pra você ver! Eu e a Lúcia moramos muito tempo no mesmo bairro. Ela me lembra momentos felizes da minha adolescência. Estudamos juntas no ensino fundamental e no ensino médio.
- E você não ficou feliz com o encontro?
- Claro que fiquei!
- Então qual foi o problema?
- Fazia tanto tempo que eu não saía de casa! Meses sem tocar ou abraçar alguém. Medo desse vírus infame. Apenas as saídas necessárias, com todos os cuidados possíveis. Quando me viu, a Lúcia não escondeu a alegria. Abriu os braços e veio, ligeira, na minha direção. Logo eu, que não abraçava ninguém há tanto tempo.
- E o que você fez?
- Ora! Eu a abracei e esse é o problema. Da minha parte, foi um abraço meio desajeitado, impróprio, de alguém que não sabia se estava fazendo a coisa certa. Em volta, alguns olhares mediam aquela atitude. Isso me desconcertou.
- Será que ela percebeu?
- Tenho certeza que sim. Por isso quero me desculpar, pedir pra que não leve a mal. Não foi frieza minha.
- Talvez ela nem tenha se importado, você poderia deixar isso pra lá.
- Não acho que seja algo pra simplesmente deixar pra lá. Temos sido insensíveis, deixado muita coisa passar. São tempos estranhos!
- São mesmo, mas a tua atitude é totalmente compreensível.
- Tomara que a Lúcia pense assim!
- Quando você vai falar com ela?
- Tive pensando a respeito. Vou escrever uma crônica pra me desculpar. Falar da saudade que sinto dos nossos tempos de adolescente, com poucas preocupações, poucas responsabilidades, em que havia uma felicidade certa e sabida no nosso cotidiano. Talvez eu use a crônica e a convide pra um café. Preciso dizer a ela que, naquele dia, a vontade de abraço era predominante e gritava em mim.
- Aonde você vai publicar essa crônica?
- Em todos os lugares possíveis, pra que ela seja um registro do que estamos vivendo. Tempos estranhos, repletos de distâncias doídas e abraços impróprios, curtos, desajeitados (ou a total ausência deles). Vou terminar a crônica assim: Desculpa, Lúcia! Que as palavras deste texto possam te abraçar com toda a propriedade que faltou aos meus braços hesitosos, titubeantes.
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