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Diário da quarentena: Sobre-viventes

Dias lentos, entre livros, séries, músicas e vários artifícios que invento para lidar com a situação. Faz dias que não saio, mas hoje tive que ir ao mercado comprar algumas coisas. Antes de sair, pego um óleo essencial de hortelã-pimenta e pingo duas gotinhas em uma das mãos, que logo se encontram. Esfrego uma mão na outra, carinhosamente. Não sei ao certo as razões que me fazem agir assim. Talvez meu cérebro tenha necessidade de criar rituais. Percebo que, nesta quarentena, tenho criado ritos diários que envolvem óleos essenciais.


Ao colocar o corpo para além do portão do prédio, a sensação era, no mínimo, transgressora. Bateu um frio na barriga. Arrependida, pensei em voltar. O que estou fazendo? Mas, ao mesmo tempo, havia coisas por comprar e eu sabia que aquela saída rápida poderia ser um bálsamo para a minha saúde mental. O caminho entre o prédio e o mercadinho é de 700 metros e me permite passar por uma região bastante movimentada da cidade onde moro. Aliás, eu passaria em frente a um restaurante conhecido por não fechar nunca. Um dos pontos turísticos da cidade.


Passos ligeiros, intercalando as calçadas quando outra pessoa aparecia pela frente. De longe, avistei dois homens em situação de rua. Rostos conhecidos. Um deles usava máscara azul e gritava palavras que eu, pela distância, ainda não conseguia compreender. Na ânsia de entendê-lo, percebi que apressei o passo, mesmo que fosse um ato inconsciente. Ao me aproximar, consegui ouvir com clareza. Ele gritava: “Meu inferno é antigo. Meu inferno é a rua. Nem ligo pra essa história de corona”. E soltou uma gargalhada ao concluir a frase.


Segui o caminho, aquelas palavras na cabeça. Para atravessar a avenida movimentada geralmente é preciso esperar pela luz vermelha do semáforo. Não dessa vez. Atravesso sem nem mesmo olhar para o sinaleiro. Não há carros, nem medo. O restaurante que nunca fecha, fechou. Só um cachorro descansa manso nas escadas da entrada. No posto de gasolina, um frentista lava as mãos, enquanto outro usa álcool gel, sem economia.


Nos poucos carros que passam, vejo pessoas com máscaras. Eu não uso nada. Chego ao mercado (vazio) e faço as compras com rapidez. Levo uma lista comigo, para não esquecer de tudo o que preciso. Não quero ter que sair de casa tão cedo. Os funcionários da loja se oferecem para entregar minhas compras e sinto um alívio por isso. Eu, aliviada por não ter que andar os mesmos 700 metros com aquelas compras nos braços. Pago a conta e vou para casa ainda mais rápido. Logo o entregador estará na porta, com todos os produtos que comprei.


Na volta, passo novamente pelos homens de rua, sentados numa esquina, na sombra da mangueira. Agora, os dois usam máscaras. Se ao menos fosse época da manga, talvez eles tivessem algo para comer. Não têm. A caminho de casa, eu percebo o tamanho do meu privilégio. Reclamo das compras que não quero carregar, enquanto alguns reclamam da fome que sentem. Chego no apartamento e sigo todos os protocolos de higiene e segurança, que culminam em um banho morno, demorado e renovador. Enquanto isso, lembro daqueles homens, embaixo da mangueira. Sem comida, sem banho e de máscaras no rosto.


Foto: Larissa Campos

*Crônica publicada originalmente pelo site Cidadão Cultura, em 31 de março de 2020. https://www.cidadaocultura.com.br/diario-da-quarentena-sobre-viventes/

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