Literatura e salvação
À Marília Bonna, que me incentivou a escrever este texto
Um dia desses, uma amiga comentou que adulto gosta mesmo é de gente com a terapia em dia. Eu concordei prontamente e explico: são doze anos de terapia, tendo experimentado algumas abordagens da Psicologia. A minha experiência de vida me leva a admitir que, nesse percurso, a terapia realmente me ajudou a ir além, a manter o equilíbrio, a ser mais responsável pelos meus atos e a reconhecer comportamentos e crenças que não favorecem o meu processo de crescimento.
Mas além da terapia, outros fatores têm sido fundamentais para me auxiliar a manter a saúde mental e me aprimorar enquanto ser (o que, para mim, é caminho sem volta). Costumo dizer que a literatura já me salvou de mim mesma em várias situações. Algumas obras e autores funcionaram como verdadeiros gurus, como guias e mestres que me conduziram por caminhos mais firmes, quando as coisas não estavam tão firmes em mim.
Entre os meus quinze e dezessete anos, li todos os livros da Clarice Lispector, que foi uma grande companheira de adolescência. Não esqueço quando concluí a leitura de “Um sopro de vida” (Pulsações), o último livro que a Clarice escreveu. Trata-se basicamente de um diálogo entre a escritora e Ângela Pralini, seu alter ego. As conversas entre elas são profundas, filosóficas e ficam nítidas as inquietações de quem sabe que o fim não vai demorar a chegar.
Aos dezoito anos, encontrei uma edição de “Sidarta”, do Hermann Hesse, em um sebo e levei-a para casa. Naquela época, meus pais estavam em processo de separação, eu acabara de entrar na faculdade e a cabeça era um turbilhão. Mas Hesse me deu a mão e, ao lado dele, eu tive os primeiros contatos com expressões e histórias relacionadas ao budismo (que depois estudei melhor).
Na leitura de “Sidarta”, uma das expressões mais marcantes foi “Samsara”, termo que explica o movimento cíclico da vida, repleta de nascimentos, renascimentos, prazeres, angústias, alegrias, dores e morte. Ou seja, repetições que não são fáceis de lidar. Para escapar desse ciclo (aparentemente sem fim), a única maneira é buscar a iluminação, mirar o “Nirvana” e trilhar um caminho de mais paz, menos ego. Não é fácil, nem rápido, mas o importante é caminhar, mesmo que devagar. Hesse me ensinou sobre isso e, com ele ao meu lado, eu superei um momento complicado da vida.
Na minha caminhada até aqui, outros grandes nomes me salvaram. Tolkien, Proust, Kawabata, Nietzsche (que me deu super poderes), Cortázar, García Marquez, Le Guin, Angelou, Woolf, Hemingway e vários outros. Sobre Hemingway, aliás, eu quero (e preciso) escrever um pouco mais.
“O velho e o mar” é outra obra marcante na minha caminhada. Peguei o livro emprestado na biblioteca da escola. Eu tinha treze anos e a cabeça cheia de inseguranças. No começo, a leitura não fluiu como eu imaginei. Achei o livro um pouco “arrastado” e pensei em deixá-lo de lado. Mas não gosto de abandonar livros, tento sempre ir até o final. Ainda bem que não desisti.
Senti toda a angústia do pescador Santiago, entregue ao mar, à espera do tão sonhado peixe. Ao lado dele, naquele barco, eu senti o sol quente no rosto, o calor na pele, a fome e sede sem fim. Também senti o peixe fisgar e, juntos, nós lutamos incansavelmente. Que luta! Terminei a leitura exausta, mas me sentia mais forte.
Pensar naquele peixe grande e em todos os sentimentos que o livro causou em mim, também me fez compreender melhor a dinâmica da vida e entender que muitos problemas, por maiores que pareçam, possuem uma solução. O poder de tecer e destecer está em nossas mãos. É simplesmente decidir, soltar os fios, desfazer a trama e seguir mais leve, sem emaranhados.
Os livros já me ensinaram tanto que hoje, sempre que abro um deles, sinto como se me preparasse para um ritual. E me entrego à leitura, atenta e perseverante, porque sei que, naquelas páginas, podem estar mais alguns capítulos da minha própria salvação.
*Crônica publicada originalmente pelo site Cidadão Cultura, em 19 de novembro de 2019. https://www.cidadaocultura.com.br/literatura-e-salvacao/
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