Imunidade II
Estela corta o limão ao meio. “Pelo visto está bem maduro e vou tirar dele uma boa quantidade de suco”, ela pensa. São seis da manhã, um dos horários do dia que Estela mais gosta. Poderia usar o espremedor de frutas pra tirar o suco do limão, mas gosta mesmo é da sensação de espremer com as mãos, apertar com força até tirar dele o máximo de líquido que conseguir. Fazer isso permite sentir a textura do fruto, das partes dele e até mesmo a sua acidez, que deixa as mãos de Estela ressecadas.
Hoje, ao espremer o limão, ela notou um pequeno corte entre o polegar e o indicador da mão direita. Impossível não notar diante da ardência causada pelo líquido ácido, a atravessar seus poros. Num mergulho cuidadoso na própria memória, Estela tenta lembrar onde e como havia feito aquele corte. Demora um pouco, mas lembra: era um corte feito com folha de papel, toda branca, durante trabalhos com origami para afastar o tédio e ansiedade de dias estranhos. Quando o peito aperta, ela faz aves em folhas de papel.
Usa o suco do limão para compor uma receitinha que aprendeu. É um mix de produtos que auxiliam a fortalecer a imunidade e deixam a saúde em dia. Faz anos que aprendeu a receita e a repete. Mas nas últimas semanas, fazer a mistura se tornou um compromisso diário. Bebe rápido o líquido azedo, sem careta para acompanhar. É mais um ritual desses tempos de pandemia. Depois que bebe, Estela se sente imune, forte, livre do vírus, dos perigos, como se tivesse tomado um elixir da vida eterna. Sabe do jogo psicológico que faz com ela mesma, das brincadeiras que cria para vencer cada um desses dias.
Agora, ela não fica um único dia sem tomar a misturinha. “Melhor não arriscar. Vai que, numa dessas, um resfriado me visita? Longe de mim facilitar algo assim!”. Houve um dia, meados de março, em que Estela esqueceu de fazer a mistura. Acordou indisposta e simplesmente se recusou a cumprir o ritual. Horas depois, precisou lidar com uma crise de espirros. Devia ser alergia, fazia pouco tempo que ela havia limpado a casa. Um sentimento de culpa agudo, funesto, tomou conta dela e o motivo era simples: naquele dia, ela abriu mão da mistura fortalecedora.
Em menos de duas horas, Estela usou o termômetro três vezes para checar a temperatura, que insistia em se manter normal. Ela podia jurar que estava febril. Ao menos a temperatura do corpo seguia normal, nesses dias de uma anormalidade insana, ora agitados, ora calmos. Dias regados a suco de limão e misturas para imunidade, mesmo sabendo que, na verdade, não estamos imunes a nada.
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