O retorno do gato preto
O som da freada de carro invadiu o silêncio da manhã de sábado. Ainda era cedo, as ruas do centro da cidade estavam desertas e escuras. Em breve, o sol daria início à subida para mais um dia. Apesar do cansaço da semana acumulado no corpo, Anna acordou cedíssimo para correr. Gostava de correr pelo centro para admirar a arquitetura, as fachadas antigas de alguns prédios em contraste com as construções modernas. Também ela era assim, repleta de contrastes e contradições.
Os pés dela pularam de súbito para a calçada antes mesmo do som da freada terminar. Anna olhou ao redor para ver o que se passava. O motorista precisou fazer uma manobra rápida e frear com força para não matar o gato preto, ainda filhote, que atravessava a rua. A luz dos faróis reluzia no pelo do animal, que brilhava. Assustado e indefeso, o gato permanecia imóvel em frente ao carro, enquanto o motorista buzinava, gritava pela janela para que o bicho saísse do caminho, mas ele não se mexia. Comovida com a situação, Anna correu até o local e tomou o gato nos braços, tirando-o da rua. O carro partiu com pressa.
A ideia era deixar o filhote na calçada e retomar a corrida, mas algo a impediu. Olhava para ele, tão pequeno. Talvez o gato não tivesse a mesma sorte na próxima ocasião, talvez acabasse esmagado pelo pneu de um carro, as tripas expostas, o mundo de fora a ver o mundo de dentro. Ele miava baixinho, parecia dócil. Seria um bom bicho de estimação, uma companhia para ela, sozinha no apartamento. Voltou para casa com o gato nos braços.
Havia um pet shop próximo ao prédio em que ela morava. Esperou o local abrir e levou o filhote até lá. Pediu que dessem banho nele e as vacinas necessárias. Quando o devolveram, o bicho brilhava como nunca e ela ficou impressionada com a beleza do animal, ainda mais charmoso com a fita vermelha no pescoço.
No pet shop, Anna comprou coisas que facilitassem a adaptação do gato ao apartamento: caixa de areia, arranhador, bebedouro, brinquedos e comidas. Ela não entendia muito de animais de estimação, nunca havia tido um gato, por isso, comprou tudo o que o vendedor indicou. Com o bicho em um braço e as compras no outro, seguiu até o prédio, satisfeita porque agora o animal teria um lar, comida todos os dias e estaria protegido de uma série de perigos. Durante o cotidiano, ela teria alguém para conversar sempre que chegasse em casa, alguém para fazer carinho, para brincar com ela. Amenizaria a solidão dos dias?
Assim que Anna e o gato entraram no elevador, o vizinho do 804 entrou atrás e quis interagir, para angústia dela. Na vizinhança, tinha fama de antipática. Os mais próximos sabiam que era tímida, levava tempo para se soltar.
- Qual o nome dele?, perguntou o homem, apontando o animal.
- Ainda não tem nome, foi adotado hoje.
- Parabéns pela atitude! Também penso em adotar um bichinho.
- Eu nunca havia pensado nisso, mas hoje ele entrou na minha vida e me fez pensar.
O elevador parou no oitavo andar, o vizinho acenou para o gato e, antes de virar as costas, disse: “Tomara que vocês sejam felizes um com o outro”.
Os primeiros dias na companhia do novo amigo foram tranquilos. Ela buscou deixá-lo à vontade, embora estivessem no décimo andar de um prédio e o apartamento não fosse tão grande quanto gostaria. O gato recebeu o nome de Black e parecia gostar do novo hábitat.
Numa noite, um mês após a chegada dele ao apartamento, Anna acordou na madrugada ouvindo o miado alto, desesperado. Levantou e foi até a sala, onde ele costumava dormir, mas não o encontrou. Decidiu tentar o escritório e lá estava o bicho, olhar apavorado, as unhas afiadas arranhando a parede. Black olhava fixamente para o quadro que decorava o cômodo, uma foto do escritor Edgar Allan Poe. Ela pegou o gato com cuidado, o aconchegou em seu colo e o levou para a sala. Aos poucos, ele se acalmou.
Poe era o escritor preferido dela. O amor pela obra dele começou quando tinha treze anos e ganhou uma coletânea de contos de suspense que incluía histórias do autor. Foi com aquele livro que conheceu Os crimes da rua Morgue e O mistério de Marie Roget. Depois disso, decidiu ler toda a obra dele, cada conto, poema, até os ensaios. Naquela noite, Black miava desesperado enquanto encarava o rosto soturno do escritor na parede.
Os episódios de pânico vivenciados pelo gato começaram a se repetir duas, três vezes na semana, sempre durante a madrugada. Ela buscava ter paciência, cuidar do animal, dar carinho e tranquilizá-lo. Marcou consulta com o veterinário, que submeteu Black a uma bateria de exames. Nenhum problema foi constatado. Uma amiga indicou acupuntura, ela agendou. Levava o felino às sessões duas vezes na semana, mas as crises noturnas persistiam.
A situação tomava conta dos pensamentos de Anna. Na maioria das vezes, ela perdia o sono após acudir o gato e, no outro dia, precisava reunir todas as forças para dar conta do trabalho e de outros afazeres. As corridas ficavam em segundo plano, não tinha coragem de madrugar para correr pelo centro e contemplar as fachadas que tanto gostava. Sentia-se cansada. No escritório de advocacia onde trabalhava, ela andava aérea, com dificuldade para se concentrar nos processos que formavam pilha sobre a mesa. Volta e meia, pensava no olhar desesperado do gato, nas vezes em que ele ficava parado diante da foto de Poe. Quando sentia ódio pelo bicho, ela balançava a cabeça para fazer as ideias ruins se dissiparem. “Por que aquele carro não o atropelou?”, pensava e sacudia a cabeça com força.
Um dia, ao final do expediente, Anna mirou o calendário sobre a mesa de trabalho e constatou: fazia três meses daquela manhã de sábado, quando uma freada de carro a levou a Black. Caminhou até o banheiro e encarou o rosto abatido no espelho: as olheiras cresciam um pouco mais a cada dia, deixando o cansaço evidente. Estava acabada! Tentava manter algum carinho pelo bicho, mas era difícil. Dentro dela, amor e ódio se jogavam na pista, numa dança esquisita e descompassada. No caminho para casa, resolveu apelar para um amigo benzedor. Ligou para ele e, resumidamente, explicou o que estava acontecendo.
- Já tentei de tudo! Não sei o que fazer.
- Os gatos são muito sensíveis à energia dos ambientes e das pessoas. Eu tenho três e eles percebem muita coisa, inclusive minhas mudanças de humor.
- Teu humor oscila pra caralho, só consigo ter pena desses gatos. Tadinhos!
- Deixa disso! Eles são muito bem cuidados.
- Eu sei. Voltando ao motivo do telefonema... não consigo dormir. Você faz ideia da situação?
- Deve ser difícil! Precisamos avaliar a energia desse apartamento. Alguma coisa está incomodando o gatinho.
- Preciso de você hoje à noite, entendeu?
- Eu vou, mas faço questão de registrar: não esperava ouvir isso de você, a mais cética do rolê.
Quando o amigo benzedor entrou no apartamento, Black deitou em um canto da sala de jantar e ali permaneceu até o homem ir embora. Naquela noite, o gato teve a pior crise. Corria pela casa, miava desesperadamente, arranhava com força a parede do escritório onde a foto de Edgar Allan Poe estava pendurada. Anna tentou de tudo para acalmar o felino, que só aquietou-se quando o dia amanheceu. Com os nervos atacados, ela mandou uma mensagem para a chefe, dizendo que estava indisposta e sem condições de trabalhar. Adormeceu no sofá da sala.
Enquanto dormia, teve um pesadelo terrível. Chegava em casa tomada de raiva e iniciava a procura pelo gato. O encontrava encolhido, bastante assustado, embaixo da cama. Sem paciência, puxava o bicho pelas patas e ele lhe cravava os dentes em uma das mãos. Com ódio pulsando dentro de si, arrastava Black até a cozinha onde, com ajuda de um canivete, arrancava um de seus olhos.
Acordou ofegante, com expressão de pavor. Não queria ter sonhado com algo tão cruel. Sentada no sofá, Anna lembrou de “O gato preto”, o conto escrito pelo Allan Poe. Nele havia uma passagem semelhante ao sonho dela: o dono arrancava o olho do gato de estimação. Sentiu culpa pelas vezes em que detestou o animal, pelas vezes em que desejou que ele morresse. Para compensar tudo aquilo, submeteria Black a sessões de amor e carinho.
Anna pulou do sofá e passou os olhos pela sala. Não viu o gato. Correu ao escritório e não o encontrou. Olhou em cada cômodo do apartamento, embaixo da cama, dentro dos armários e atrás deles. Em meio à procura, chamava pelo filhote. Voltou à sala sem saber o que pensar, com a cabeça pesada, ocupada pelo pesadelo recente. A moça abria e fechava os olhos na tentativa de esvaziar a mente e manter-se próxima da realidade.
Um detalhe chamou sua atenção na sala de jantar. A tela de proteção da janela estava cortada. O pedaço rasgado era grande o suficiente para que uma pessoa pudesse atravessá-lo. “O gato rasgou a tela e despencou. Deve estar arrebentado”, ela disse. De pijama, sem chinelos, Anna entrou no elevador rumo ao local da área de lazer onde, supostamente, o corpo do gato deveria estar. Não havia nada por lá. Insistente, ela olhou os canteiros de plantas, as latas de lixo, passou pela piscina e se abaixou para ver se o gato estava sob algum carro. Sem sucesso nas buscas, resolveu voltar ao apartamento, não sem antes perguntar ao porteiro se ele havia visto Black passeando pelo prédio. “Não vi não”, foi a resposta.
No elevador, no retorno ao apartamento, ela tentava controlar o sono e a enxurrada de pensamentos. Gostaria de encontrar algum sentido naqueles acontecimentos, mas nada era capaz de ajudá-la. Lembrava do sonho, das crises noturnas do animal, dos olhares assustados para a foto de Allan Poe, do buraco na tela de proteção, de todas as tentativas empreendidas naqueles três meses. Fez uma última busca quando voltou ao apartamento: não encontrou o gato. O que tanto o assustava? Desejou sair dali. Cansada, pensou em alugar o imóvel, colocá-lo à venda. A decisão ficaria para outro momento. Confiante de que o sono varreria os maus pensamentos, atirou-se no sofá e dormiu.
*Conto publicado originalmente pela Revista Ser Mulher Arte, em 04/09/2020.
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