Uma leitura para libertar o pássaro preso na gaiola
No livro “O que o sol faz com as flores”, a escritora Rupi Kaur escreve: “Me levanto/ sobre o sacrifício de um milhão de mulheres que vieram antes/ e penso/ o que é que eu faço/ para tornar essa montanha mais alta/ para que as mulheres que vierem depois de mim/ possam ver além”. Quando leio isso, é inevitável pensar no que eu, enquanto mulher, faço para auxiliar outras mulheres nessa jornada.
Pensar nisso também remete à importância de difundir as histórias de mulheres que tanto fizeram, que tanto lutaram para que outras pessoas pudessem ver além. Uma dessas mulheres é Maya Angelou. Escritora, poetisa, atriz, dançarina, ativista... Maya foi uma mulher negra que não se calou diante dos absurdos da segregação racial nos Estados Unidos.
Na autobiografia “Eu sei por que o pássaro canta na gaiola” é possível conhecer um pouco da infância e adolescência da escritora. Marguerite (verdadeiro nome de Maya) e seu irmão, Bailey Johnson Jr., moravam em Long Beach, na Califórnia. Com a separação dos pais, eles são mandados à cidade de Stamps, Arkansas, para morar com a avó paterna, Annie Henderson. Quando chegaram ao local, no início da década de 1930, a menina tinha três anos e o irmão, quatro anos.
A avó Annie era dona de um mercado na região “negra” da cidade de Stamps. Nos primeiros capítulos do livro, Maya faz relatos sobre o cotidiano dela e do irmão na nova cidade. Os acontecimentos geralmente tinham como pano de fundo o mercado da “momma Annie”, frequentado especialmente por trabalhadores negros. Em alguns trechos, Maya destaca a relação afetiva que ela desenvolveu com o local.
“Até eu ter treze anos e ir embora do Arkansas de vez, o Mercado era meu lugar favorito. Sozinho e vazio durante a manhã, parecia um presente fechado dado por um estranho. Abrir as portas da frente era soltar a fita de um presente inesperado”. (p. 31)
Os relatos de Maya a respeito dos primeiros anos dela em Stamps mostram como a segregação racial se estruturava na cidade. Segundo ela, a situação era tão absurda que a maioria das crianças negras não tinha a menor ideia de como os brancos eram. Isso era fortalecido pelo fato da cidade ser dividida em lado negro e lado branco. O preconceito no local era tamanho que alguns costumavam dizer que os negros não podiam sequer comprar sorvete de baunilha, a não ser no quatro de julho, e tinham que se satisfazer com chocolate.
Aos sete anos, Maya e o irmão vão morar com a mãe em Saint Louis, uma cidade do Missouri. O período vivido no local deixaria marcas com as quais Marguerite precisaria conviver por toda a vida. Na casa da mãe, a menina sofre uma série de abusos sexuais por parte do padrasto, o senhor Freeman. A estranheza, dor e opressão que os abusos provocam na garota ficam evidentes em trechos como esse: “E aí veio a dor. Uma invasão indesejada em que até os sentidos são destruídos. O ato de estupro em um corpo de oito anos é questão da agulha deixar o camelo passar pelo seu buraco por não ter outra opção. A criança cede porque o corpo pode e a mente do violador não consegue”. (p. 100)
A narrativa de Maya, como ela própria faz questão de enfatizar em vários momentos do livro, mostra o processo de empoderamento de alguém que se sentia sem controle sobre a própria vida, fadada a um destino que havia sido traçado para ela. Maya se indignava ao perceber que, no colégio dos brancos, os alunos eram ensinados para serem cientistas (recebendo estrutura e oportunidade para isso), enquanto ela e os outros alunos do colégio dos negros teriam que ser Jesse Owens (importante atleta americano).
Nada contra Jesse! Muito pelo contrário! O problema era outro: crianças e jovens brancos tinham um leque de oportunidades a sua frente, poderiam ser o que quisessem, inclusive atletas, como o grande Jesse. Para Maya e seus colegas da Lafayatte County Training School (a escola dos negros) a realidade era diferente, as oportunidades eram muito limitadas, por mais que eles se esforçassem.
Influenciada especialmente pela força de mulheres, como a avó Annie Henderson, Maya tornou-se uma importante voz na luta contra o racismo e todas as formas de discriminação. Por meio da literatura e outras artes, ela deixou um legado que inspira, promove a reflexão e pode ser sentido ao ler o poema “Still I rise”, que compartilho aqui (traduzido).
Ainda assim me levanto (Maya Angelou)
Você pode me inscrever na história
Com as mentiras amargas que contar
Você pode me arrastar no pó,
Ainda assim, como pó, vou me levantar
Minha elegância o perturba?
Por que você afunda no pesar?
Por que eu caminho como se eu tivesse
Petróleo jorrando na sala de estar
Assim como a lua ou o sol
Com a certeza das ondas no mar
Como se ergue a esperança
Ainda assim, vou me levantar
Você queria me ver abatida?
Cabeça baixa, olhar caído,
Ombros curvados como lágrimas,
Com a alma a gritar enfraquecida?
Minha altivez o ofende?
Não leve isso tão a mal
Só porque eu rio como se tivesse
Minas de ouro no quintal
Você pode me fuzilar com palavras
E me retalhar com seu olhar
Pode me matar com seu ódio
Ainda assim, como ar, vou me levantar
Minha sensualidade o agita
E você, surpreso, se admira
Ao me ver dançar como se tivesse
Diamantes na altura da virilha?
Das choças dessa história escandalosa
Eu me levanto
De um passado que se ancora doloroso
Eu me levanto
Sou um oceano negro, vasto e irrequieto
Indo e vindo contra as marés eu me elevo
Esquecendo noites de terror e medo
Eu me levanto
Numa luz incomumente clara de manhã cedo
Eu me levanto
Trazendo os dons dos meus antepassados
Eu sou o sonho e as esperanças dos escravos
Eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto
*Resenha publicada originalmente pelo site "Senhora de si", em 16/03/2020. https://www.sradesi.com.br/post/uma-leitura-para-libertar-o-p%C3%A1ssaro-preso-na-gaiola
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